sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Renascimento

Depois de um temporal que durou meses, depois de dias e noites vegetando em cima de uma cama, achando que a vida era um presente que eu não queria ter recebido; depois de meses dormindo demais e paradoxalmente passando noites em claro, de pensar no quanto eu queria morrer em cada fôlego que tomava; depois de viver no limite, com os pés no último centímetro do alto de um prédio e de entrar mar a dentro, rezando para que a rainha me tomasse em seus braços, me levando pra morar na profundeza sem que nunca achassem meu corpo, devorado por seres famintos ainda desconhecidos para o ser humano. Depois de um vale de lágrimas, de calar meus gritos de dor nos travesseiros para que os vizinhos não chamassem a polícia. Depois de porres dignos de um colapso hepático, de misturas de drogas lícitas e ilícitas em grandes quantidades em uma mesma noite, rezando para ter uma overdose e acharem meu corpo de pele alva, sem vida, sem cor, sem luz.
Eis que surge um amanhecer inesperado em meio às minhas trevas. Uma ponta de raio de sol chamou minha atenção e ofuscou meus olhos acostumados à escuridão. E minha mente temerosa se abriu. E a luz do amor entrou rompendo aquele círculo vicioso de dor e desespero, e eu me lavei nas águas doces da esperança, bebi o néctar de um amor correspondido, vesti a minha melhor roupa e saí mundo afora. E as portas se abriram. E eu lembrei quem eu era e descobri uma força dentro de mim que foi implantada no meu DNA pelos meus antepassados, uma força que os fez sobreviver à guerra e à fome. E eu, dotada naturalmente para resisitir às maiores calamidades, não podia me entregar. Então resolvi lutar. Não aceitei o fardo da derrota, recusei o desânimo, expulsei a dor e subi, e aos poucos o fundo do poço foi ficando mais longe. Ao longo da escalada fui ficando mais forte, meus braços estavam prontos para abraçar o mundo. Minhas pernas se tornaram fortes para correr em busca dos meus sonhos. E o meu coração experimentou a pureza de um amor verdadeiro. Foi quando minhas asas antes atrofiadas se abriram e eu pude alçar o vôo mais lindo, um vôo direto para a felicidade.

Anabela - Parte 2

ANABELA, PUTA, PROSTITUTA, VADIA, VAGABUNDA. Era assim que as senhoras distintas da sociedade a chamavam quando descobriam que seus maridos pervertidos haviam se deitado com ela, as senhoras desciam ao mais baixo nível numa busca cega de culpar Anabela e não ver que os interessados no sexo prazeroso que talvez não tivessem em casa era eles, seus maridos e pais de seus filhos, honrados nos negocios, de conduta publicamente ilibada, mas que durante uma "reunião" ficavam de quatro implorando que Anabela os surrasse com um chicote e apertasse a coleira em seus pescoços. E ela, boneca inflável sem sentimentos e com uma pele que não era de borracha, penteava os longos cabelos castanhos encaracolados naturalmente nas pontas, enquanto fumava um cigarro e ouvia as senhoras de classe perderem a classe gritando escandalosamente em frente a sua janela. Anabela, então, apagava o cigarro, cobria o corpo nu com uma camisola cheia de ursinhos e estrelas que ganhara há tempos de sua mãe, colocava os fones de ouvido e adormecia, como se o mundo a sua volta e a consequência de seus erros não importasse. Não mais.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Anabela

O coração de Anabela congelou de tal forma que ela não se permitiu mais sonhar. Saía toda noite, numa busca insana por sorrir, nem que para isso fosse necessário virar todos os shots da casa. E em meio a bebedeira, seu corpo era inflamado pelo desejo e ela sempre acabava dormindo em camas desconhecidas. Cansou de acordar, olhar para o lado e perceber que tinha cometido mais um erro, erros altos, baixos, morenos, loiros, fortes ou franzinos. A cabeça latejava de ressaca, mas o que mais pesava era a ressaca moral, uma pressão que ela mesma se permitia sentir desnecessária, num mundo onde cada um faz o que quiser de si mesmo. Vestia-se rapidamente e saía o mais rápido possível, sem deixar qualquer rastro, não queria e não podia ser reencontrada. Acordava e sumia, na tentativa de esquecer o que fez. Até que um dia, um cara a convidou para ir a "um lugar mais tranquilo" e ela foi, mas queria uma grana por dar a ele o privilégio da sua companhia. O sexo foi como qualquer outro, permitiu-se ser usada, mas o diferencial foram as notas que o cara deixou em cima da cama. Ela então mandou o mundo pro inferno e, antes dava seu corpo, agora o vendia, como produto de sua mesquinha existência. E chorava, enquanto os caras se divertiam com ele. Anabela não era mais Anabela. Agora ela era outra pessoa, sem nome, sem sonhos, sem esperanças.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Um segredo europeu

Dá o doce e depois toma de volta. Dá corda até quase eu me enforcar e depois vai embora. E eu coro. Minha face entrega o quanto eu fico de queixo caído te vendo passar. Teu jeito príncipe dinamarquês de sorriso fácil tocou fundo, abalou minhas estruturas e despertou minha curiosidade. Como será o cheiro da tua pele e o toque dos teus lábios? Como será a tua companhia? Será que poderíamos ser felizes numa amizade franca verdadeira e até colorida? E em meio a essas indagações, vou dando asas ao meu pensamento curioso e criando um personagem que tem teus olhos claros e teu corpo que me desperta uma vontade quase que incontrolável de abraçar. E nesse meu mundo paralelo utópico tu és o protagonista, divago, e crio histórias e me perco... Ainda que tu não saibas, te nomeio: meu segredo europeu.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Fera

E teus olhos febris ainda me atingem naquela foto de sorriso enigmático, que esconde um lado teu que talvez só eu tenha conhecido e ainda conheça, e que não mudou com o passar desses anos todos. Teu passageiro sombrio sabe perfeitamente quem sou e do que sou capaz e tu o escondes, assim como eu, atrás de uma fachada politicamente correta, uma máscara de bons cidadãos, cumpridores das leis, com relacionamentos estáveis e profissões sólidas, ambição controlada e impostos pagos sem reclamar. Mas a minha passageira sombria sabe o que tu escondes embaixo desse uniforme, e o deseja e sente teu gosto na boca só de fechar os olhos, e tu tanto a decifras que ela se expõe pra ti, unicamente a ti. E eu preciso manter ela sob controle, preciso manter minha vida correta, que me sustenta e sustenta esse mundo colorido em que vivo. Mas as vezes... as vezes a fera se solta e nem que seja em pensamento eu me mostro pra ti, nua de alma, despindo a obrigação de fazer tudo certa e evidencio o que tenho de pior para uns e de melhor para outros. Me exponho, minhas fragilidades e minhas decadências, meu desejo doentio por um gole e uma tragada a mais... tudo numa busca frenética de relaxar profundamente, como nada no mundo o faz! Vou fechar os olhos e tentar dormir, acorrentar esse monstro que vive dentro de mim e que sente profundamente a tua falta